Artigo

CIDADANIA: CONCEITO E VIVÊNCIA UNIVERSAL

1. Introdução

O presente artigo tem como proposta inicial avaliar o exercício e a efetividade de direitos assegurados pela Constituição Federal e vinculados à cidadania, especialmente em face da crise verdadeiramente crônica que atinge o estado brasileiro.  Necessárias serão algumas considerações a respeito do fenômeno da Globalização, como ele atinge o Brasil e as nações pobres, muitas vezes impedindo ou neutralizando a implementação de políticas públicas eficazes.

Em um segundo momento, pretendemos promover uma análise da dimensão e dos limites da busca pelo reconhecimento destes direitos, sobretudo a partir da incorporação da cidadania e da dignidade da pessoa humana como fundamentos da República Federativa do Brasil, que se pretende um Estado Democrático de Direito.

A idéia também é demonstrar a necessidade de desenvolvimento de um compromisso mais amplo de parte das nações ricas, no sentido da adoção de medidas capazes de diminuir as desigualdades, assegurando um processo crescente de resgate mundial da cidadania.

2.  Cidadania e a crise crônica do estado brasileiro

Fundamental que de imediato seja ressaltado, que a Constituição Federal indica como fundamentos da República a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Em complemento, aponta como objetivos da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional com a erradicação da pobreza, de modo a reduzir as desigualdades sociais e regionais, além de promover o bem de todos.

Portanto, a realidade atual indica que o Estado Democrático de Direito no Brasil precisa urgentemente ser repensado e reestruturado, considerando suas peculiaridades sociais culturais e econômicas, as quais revelam significativos déficits de inclusão social e participação política. COSTA[1] alerta neste sentido:

Vivemos uma época em que a capacidade criadora, proveniente da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, amplia consideravelmente o exercício da cidadania por parte daqueles segmentos sociais oprimidos e excluídos por alguma razão. Nesse novo cenário, é inútil ficarmos teorizando sobre a função do Estado, pois a sociedade brasileira tem problemas urgentes e concretos a resolver. O investimento em políticas públicas preventivas na área da saúde, educação, segurança é pré-requisito do investimento econômico e garantia do exercício da cidadania que constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Tal evidência impõe aqui um registro, no sentido de que o constitucionalismo moderno-contemporâneo contemplou duas fases. Uma caracterizada pelo Estado Liberal e, a outra, pelo surgimento e sedimentação dos direitos sociais, decorrente da necessidade de identificação de um novo papel para o Estado. Consolida-se a partir de então uma noção mais consistente de cidadania.

VIEIRA[2] afirma que a “cidadania tem assumido historicamente várias formas em função dos diferentes contextos culturais”, e que ela é composta pelos “direitos civis e políticos – direitos de primeira geração[3] – e dos direitos sociais – direitos de segunda geração[4]”.

Em realidade, ao longo da história[5] ocorreu evolução significativa da idéia de cidadania, passando mais recentemente da noção de simples titularidade de direitos à concepção de gozo efetivo dos direitos individuais, coletivos, sociais e políticos. Em conseqüência, a noção atual de cidadania é a de fruição concreta desses direitos todos, necessários e fundamentais para o desenvolvimento do indivíduo.

REILLY[6] refere a existência de desgaste dos direitos vinculados  à cidadania, sinalizando para a existência do que chama ilusões de progresso. Pensamos que teve ele a intenção de passar a idéia de que não basta apenas haver previsão de direitos em nível legislativo. Há necessidade de efetividade dos mesmos, o que não se verifica atualmente. O Estado de certa forma chegou a um limite, que impede o atendimento dos direitos reconhecidos ao cidadão, sobretudo em face dos limites impostos pelo seu poder de arrecadação. Assim para atender as crescentes exigências e novas demandas sociais, o Estado deve buscar e encontrar alternativas. Isto porque conforme já foi referido, a Constituição Federal[7] indica como fundamentos da República a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Em complemento, a Carta Política aponta como objetivos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a garantia do desenvolvimento nacional com a erradicação da pobreza, reduzindo as desigualdades sociais e regionais e promovendo o bem de todos.

Nesta linha, possível afirmar que nas últimas décadas a cidadania adquiriu um conteúdo social, na medida em que ser cidadão implica em ter direitos de natureza econômica, social e cultural. Não há como negar que esta nova noção de cidadania foi resultado do desenvolvimento econômico e social do século XX, que configurou o chamado Welfare State, o qual em termos gerais representou um esforço de reconstrução econômica, moral e política[8].

BOLZAN[9] afirma que o Estado do Bem-Estar Social corresponde aquele

no qual o cidadão, independentemente de sua situação social, tem direito a ser protegido, através de mecanismos/prestações públicas estatais, contra dependências e/ou concorrências de curta ou longa duração, dando guarida a um fórmula onde a questão da igualdade aparece – ou deveria parecer – como fundamento para a atitude intervencionista do Estado.

Significa dizer de outro modo, que o Estado do Bem-Estar Social corresponde a institucionalização dos direitos sociais[10].  Portanto, este modelo de Estado é identificado por garantir a todo cidadão direitos básicos, como alimentação, educação, saúde, habitação. E isto tudo mediante o simples reconhecimento de que tais garantias importam em efetivo direito.

Todavia, as dificuldades de transpor o plano teórico em direção ao prático, permitiu no Brasil a identificação de uma crise resultante de obstáculos de ordem econômica, eis que as receitas do Estado não tem sido suficientes para suportar as despesas decorrentes dos gastos com investimentos sociais. As promessas da modernidade[11], pois, não foram cumpridas. Por óbvio, a cidadania restou e, ainda resta, significativamente atingida.

Este quadro se mostra ao nosso entender crônico. Há muito se discute em todos os níveis as origens do problema, as possíveis soluções, as razões para a difícil – para não dizer improvável, implementação de políticas públicas capazes de eficazmente minimizar os efeitos devastadores acarretados pelo não atendimento pelo Estado dos direitos resultantes da cidadania. E toda esta discussão acaba se limitando muito ao plano teórico.

De outro lado, este cenário não constitui ‘privilégio’ exclusivo do Brasil. No mundo inteiro, em especial na África, é possível identificar realidades ainda mais severas, determinando níveis de miséria inaceitáveis em tempos de Globalização e de avanços tecnológicos expressivos. E quanto a isto temos também responsabilidades, na medida em que a Carta Política[12] dispõe que o Brasil rege-se em suas relações internacionais pelos princípios da prevalência dos direitos humanos e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

Mas como superar esta crise? Como buscar soluções com efeito não só local, mas que tenham um caráter mais abrangente? É o que tentaremos responder nos próximos capítulos deste ensaio.

3. Globalização, políticas públicas e os limites territoriais

GIDDENS[13] registra que a ‘globalização’ pode ser definida como a

intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa. Este é um processo dialético porque tais acontecimentos locais podem se deslocar numa direção anversa às relações muito distanciadas que o modelam. A transformação local é tanto uma parte da globalização quanto a extensão lateral das conexões sociais através do tempo e espaço.

Na realidade, a utilização da expressão “globalização” tem ocorrido mais freqüentemente com influência da ótica ideológica, considerando que existe na atualidade em nível mundial um processo de integração econômica sob a égide do neoliberalismo, caracterizado pelo predomínio dos interesses financeiros, pela desregulamentação dos mercados, por processos de privatizações e pelo abandono do estado de bem-estar social. Esta é, inclusive, uma das razões que faz com que a globalização seja acusada de responsável pela intensificação da exclusão social, resultante do aumento da miséria, do desemprego, como também por provocar crises econômicas freqüentes, resultantes de medidas dirigidas à proteção de capitais especuladores, condenando países pobres a permanecer à margem do desenvolvimento.  Nesta linha observa LIMA FILHO[14] que a globalização expressa as contradições endógenas do modo de produção capitalista. Afirma ainda:

É nesse contexto de contradições e desafios que seguem sendo travados os embates teóricos e as lutas concretas entre capital e trabalho. Se o desenvolvimento do capitalismo foi sendo capaz de produzir uma globalização assimétrica, heterôgena e, sobretudo, desigual e produtora de mais desigualdade e exclusão social em âmbito mundial, trata-se de dinamizar a resistência social e esse modo de produção histórico – não natural, não eterno e, portando, superável.

Por outro lado o que se vê atualmente é uma constante interferência dos países ricos e dos órgãos por eles criados e controlados, como por exemplo o FMI e o BID, nas questões internas dos países pobres e em desenvolvimento. E isto se dá de forma tão profunda, que chega inclusive a determinar o controle de gastos com políticas públicas, na medida em que parte expressiva do superávit acaba destinado ao pagamento de encargos das dívidas decorrentes de empréstimos internacionais. Por óbvio, há claro comprometimento dos programas sociais, com reflexos diretos nos direitos decorrentes da cidadania. Todavia, este quadro de verdadeira demonstração de poder político e econômico resultante da Globalização, pode gerar ao nosso ver, uma acomodação equivocada.  É que a crescente miséria poderá representar no futuro ameaça a este aparente quadro de tranqüilidade.  Vale lembrar registro de WEBER[15] de que “toda formação política prefere, naturalmente, a vizinhança de formações políticas fracas às fortes. E como, além disso, toda comunidade política grande, como pretendente potencial de prestígio, significa uma ameaça potencial para todas as formações vizinhas, ela mesma está constantemente ameaçada, de modo latente, pela simples razão de ser uma formação de poder grande e forte”.

Apesar disto tudo, numa ótica otimista é possível ver a Globalização não como um quadro já concluído, mas sim como um processo em desenvolvimento constante, capaz ainda de gerar perspectivas estimuladoras na busca de melhorias sociais, econômicas, políticas e culturais.  Mas para que isto ocorra, indispensável a implementação de medidas eficientes[16], capazes de atender de forma efetiva as necessidades da população pobre,  até porque sem isto, não há que falar em cidadania.  No ponto vale referir que tais medidas podem ser resultado de políticas públicas, aqui vistas como meros instrumentos de ação dos governos, no dizer de BUCCI[17], como também conseqüência da observância de princípios.  A lição de DWORKIN[18] é precisa na diferenciação:

“Denomino ‘política’ aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas). Denomino ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá comprometer ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou de eqüidade ou alguma outra dimensão de moralidade.”

Desta forma, as políticas públicas estariam sempre vinculadas a uma conotação valorativa; de um lado, sob a ótica de quem quer demonstrar a racionalidade da ação governamental, indicando os vetores que a orientam, e de outro, em ponto de vista de oposição, ou seja, de questionamento à coerência e à eficiência da respectiva ação governamental[19].

Nesta linha, a adoção de políticas públicas caracteriza uma forma de agir do Estado, mobilizando, coordenando e fiscalizando agentes públicos e privados, objetivando a realização de determinadas medidas dirigidas não só aos direitos sociais, como também à área econômica. Significa dizer em outras palavras, que a idéia de políticas públicas sempre estará ligada às políticas econômicas e às políticas sociais. E não poderia ser de outra forma, na medida em que o fator econômico constitui vital e expressiva influência na definição das políticas governamentais.

O que se pretende demonstrar objetivamente, é que a adoção de medidas visando assegurar direitos vinculados à cidadania pode resultar da vontade de governos, como decorrer da imposição[20] de princípios contemplados na ordem legislativa constitucional. Nesta linha de argumentação, possível concluir pela necessidade de uma aproximação concreta das políticas públicas aos princípios constitucionais, sobretudo para que sejam desenvolvidos mecanismos jurídicos rígidos no controle da eficiência das ações governamentais, de modo a evitar que sob o argumento de uma possível discricionariedade da administração, acabem implementadas medidas ineficazes e dissociadas das reais orientações da ordem constitucional.  Ademais, tudo isto, evidentemente,  não pode ser visto de forma limitada no aspecto territorial, na medida em que como adverte BOLZAN[21], as Constituições contemporâneas assumiram o que denomina de “abertura expansionista”. Refere ainda que este “é um fator inafastável para o trato da temática relativa aos direitos humanos e, mais ainda, para a compreensão do papel desempenhado pelos tratados internacionais relativos aos direitos humanos, em um processo que podemos chamar de internacionalização do direito constitucional que se complementa pela internalização/constitucionalização do direito internacional público (dos direitos humanos)”. É o que de certa forma classifica CARDUCCI[22] de Direito Constitucional ‘altruísta’, cuja busca “favorece o confronto de idéias e o pluralismo da compreensão, para tornar-se um instrumento capaz de traçar os novos vínculos de amizade do ‘homem mundializado’ e pelo ‘mundo mundializado’.”

Em realidade, a idéia de desterritorialização não é nova e tem sido tratada faz tempo por vários autores.  IANNI[23], por exemplo, refere que as relações, os processos e as estruturas de dominação e apropriação, integração e antagonismo, freqüentemente dissolvem fronteiras, locais de mando, concluindo que globalizam-se perspectivas e dilemas sociais, políticos, econômicos e culturais.

Registra também que

A globalização tende a desenraizar as coisas, as gentes e as idéias. Sem prejuízo de suas origens, marcas de nascimento, determinações primordiais, adquirem algo de descolado, genérico, indiferente. Tudo tende a desenraizar-se: mercadoria, mercado, moeda, capital, empresa, agência, gerência, know-how, projeto, publicidade, tecnologia.  A despeito das marcas originais, da ilusão da origem, tudo tende a ultrapassar fronteiras, línguas nacionais, hinos, bandeiras, tradições, heróis, santos, monumentos, ruínas. Aos poucos, passa a predominar o espaço global em tempo principalmente presente.

Assim se desenvolve o novo e surpreendente processo de desterritorialização, uma característica essencial da sociedade global em formação. Formam-se estruturas de poder econômico, político, social e cultural internacionais, mundiais ou globais descentradas, sem qualquer localização nítida neste ou naquele lugar, região ou nação.

Possível constatar, portanto, que a desterritorialização constituiu um fenômeno com manifestação nas esferas da economia, da política e da cultura. Sem qualquer distinção, a vida social em todos os seus níveis é afetada pelo deslocamento ou dissolução de fronteiras. Nesta linha de colocações, indispensável a construção de processos de globalização e desterritorialização que contemplem reais possibilidades de alcance da cidadania para indivíduos, famílias, grupos, classes e outros segmentos sociais em nível mundial.

Da mesma forma como o progresso tecnológico e o deslocamento de capitais e investimentos não têm fronteiras, a adoção de políticas públicas de combate à miséria e de resgate amplo da cidadania, deve corresponder a medida conjunta dos paises ricos na busca de um mundo mais justo.

4. Valores universais e a dignidade da pessoa humana;

A Conferência Mundial de Viena de 1993 incorporou os conceitos de universalidade e indivisibilidade aos direitos humanos. Significa, por óbvio, que os direitos humanos além de indivisíveis, devem ser observados globalmente.

Nesta linha é possível afirmar que os direitos humanos fundamentais não podem mais serem vistos como privilégio de países ricos ou de segmentos privilegiados da população de nações onde as desigualdades sociais ainda se mostram expressivas.

Em conseqüência, esta idéia de indivisibilidade e universalidade deve ter reflexos em nível de tomada de decisões governamentais, sobretudo nos casos em que a riqueza concentrada e os privilégios dela decorrentes representem obstáculo para o alcance de níveis dignos de vida das populações pobres.

Portanto, a preocupação com a garantia e a efetividade de tais valores deve ultrapassar a simples previsão legislativa-constitucional das nações, devendo representar condição permanente, de modo a garantir que práticas que importem no seu descumprimento não sejam vistas como algo que atinge apenas aqueles que vivem no espaço respectivo, mas como uma ofensa geral a todos.

Tudo isto sinaliza para a necessidade de estabelecimento de uma nova cultura sócio-política, apoiada nos apontados princípios universais. Orientação para isto há muito existe, como por exemplo, a Resolução 32/130 da ONU, oriunda da Assembléia Geral de 1977, da qual destacamos os seguintes pontos: a)  os direitos humanos e as liberdades fundamentais constituem um todo único indivisível; b)  é impossível a realização dos direitos civis políticos sem o usufruto dos direitos econômicos, sociais e culturais; c) os direitos e liberdades fundamentais da pessoa humana e dos povos são inalienáveis; d) os problemas afetos aos direitos humanos devem ser tratados globalmente; e) no marco da sociedade internacional, deve ser dada prioridade absoluta para a busca de soluções a violações massivas e flagrantes de direitos dos povos e pessoas vítimas de situações que lesam sua dignidade; f) é essencial para a consolidação dos direitos e liberdades fundamentais, a ratificação pelos Estados dos instrumentos internacionais a respeito do tema.

Existem, pois, indicativos claros e objetivos para que políticas públicas sejam implementadas visando um processo não só de construção da cidadania em todo o planeta, como também de estabilização dos valores nela incorporados, não obstante a diversidade de sociedades e culturas. Neste ponto BOAVENTURA SANTOS[24] faz um alerta, ao referir que os direitos humanos só poderiam se efetivar legitimamente numa sociedade global se enfrentassem o desafio do multiculturalismo, isto é, se fossem definidos não mais como direitos abstratos e universais, de acordo com a tradição ocidental, mais sim redefinidos a partir dos valores locais das diversas culturas.

Pensamos que para atingir tais objetivos, é indispensável que sejam ultrapassadas discussões sobre a crise do Estado-nação, os desafios do multiculturalismo, como também os infindáveis debates sobre as origens e conseqüências das transformações econômicas, sociais e culturais ocorridas mais acentuadamente nas duas últimas décadas. Isto porque tais transformações fizeram surgir um novo desafio no campo da cidadania em nível mundial, e que atinge uma geração específica de direitos: os direitos sociais. KUNTZ[25] detalha bem esta questão ao afirmar que as transformações econômicas e políticas dos últimos anos colocaram em xeque especialmente o Estado keynesiano, que construído ao longo do século XX viabilizou garantias de trabalho, de remuneração, de condições mínimas de segurança econômica e de oportunidade de acesso ao mercado para grande parte da população dos países mais industrializados. Pois justamente essa ação do Estado, dirigida a promover uma justiça distributiva, vem sendo criticada pela corrente que defende a necessidade de desregulamentação total da economia mundial. Com efeito, os direitos sociais tendem a ser limitados ou anulados, já que se constituíram sobretudo como mecanismos compensatórios, como formas de limitar as desigualdades produzidas pelo mercado[26] .

Diante deste quadro contraditório, em que de um lado se busca a expansão da cidadania em âmbito planetário, e de outro se vê um conjunto de acontecimentos que em doses homeopáticas parecem sinalizar para uma autêntica desmontagem dos direitos sociais, acarretando a elevação do desemprego e o conseqüente aumento da desigualdade e da exclusão social, necessária a busca de medidas capazes de conciliar interesses e garantir o que seja efetivamente prioritário, até porque nem tudo o que é interessante para o mercado globalizado também é positivo para a efetivação da cidadania.

A partir disto pensamos que as soluções passam necessariamente pela idéia de Estado Inteligente defendida por KLIKSBERG[27], ou seja, “um estado concentrado em funções estratégicas para a sociedade e com um desenho institucional e um desenvolvimento de capacidades gerenciais que lhe permitam concretizá-las com alta eficiência”.

Segundo ele as sociedades que atingiram avanços mais significativos nas últimas décadas conseguiram superar a falsa antinomia Estado versus Mercado. Ao invés disto procuraram desenvolver um esquema de cooperação entre os principais atores sociais, integrando a este esquema importantes segmentos da sociedade civil que tanto o Estado como o Mercado  tendiam a marginalizar. Nesta linha, conclui que

Um Estado inteligente na área social não é um Estado mínimo, nem ausente, nem de ações pontuais de base assistencial, mas um Estado com uma ‘política de Estado, não de partidos, e sim de educação, saúde, nutrição, cultura, orientado para superar as graves iniqüidades, capaz de impulsionar a harmonia entre o econômico e o social, promotor da sociedade civil, com um papel sinergizante permanente.

Pensamos que possíveis decepções resultantes do eventual insucesso de tais medidas na conquista dos avanços sociais apontados, com reflexos positivos diretos para  consolidação ampla da cidadania, somente poderão ocorrer a partir da efetiva implementação das políticas sugeridas. Mas mesmo que tais decepções ocorram, com elas haverá identificação das possíveis falhas e erros. E a partir disto, novos desafios e novas buscas por medidas mais eficazes devem ser perseguidas, até porque como se procurou demonstrar no decorrer deste ensaio, a conquista de uma cidadania global deve corresponder a um perseguir constante.

5. Considerações finais

Não há como negar que o avanço do processo de Globalização estimula posições no sentido de que na mesma proporção estão se construindo sociedades desiguais. E tal evidência conduz a vinculação do fenômeno da globalização com o da exclusão social.

Como já sinalizamos neste artigo, o termo exclusão tem sido utilizado principalmente em uma perspectiva ética e política de denúncia, diante da crescente erosão da cidadania promovida pela Globalização.

Se é certo também que o processo de erosão da cidadania se agrava neste final de século, como vimos anteriormente, não é possível afirmar com a mesma certeza que estaríamos diante do esgotamento dos valores igualitários que emergiram com a modernidade. Devemos procurar manter o otimismo resultante da Carta Política Brasileira, sobretudo em face das possibilidades de avanço e evolução da cidadania, muito embora existam razões para que haja sentimento contrário, de pessimismo, como se não houvesse remédio para os males da Globalização.  Oportuno, pois, observar as considerações de BOBBIO[28], no sentido de que os direitos nascem quando novos desafios são colocados para os homens, e que o mundo contemporâneo coloca o desafio da criação de uma cidadania global que possa fazer frente às novas formas globais de poder e de dominação, e que possa concretizar, ao menos em parte, as promessas de igualdade social colocadas desde a emergência da modernidade.

Resta considerar ainda que o debate que tentamos estabelecer neste artigo, adquire maior importância se não limitarmos a análise do problema apenas no Brasil, mas no mundo todo, em especial nas nações pobres, que estão a enfrentar os desafios da Globalização sem nem mesmo ter viabilizado plenamente o acesso à cidadania clássica para o conjunto de suas populações.

Sem dúvida alguma, a superação deste desafio dependerá do aprofundamento das discussões acerca das transformações sociais globais presentes neste final de século, bem como da tomada de consciência de parte das nações ricas para a urgente necessidade de medidas amplas que visem o alcance da ampla cidadania.

6. Bibliografia

1. ANDERSEN, Costa Esping.  O Futuro do Welfare State na Nova Ordem Mundial.

2. BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do estado e da constituição e a transformação especial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

3. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002.

4. CARDUCCI, Michele. Por um Direito Constitucional Altruísta, pág.13 – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.

5. COSTA, Marli Marlene M.da. Políticas Públicas e Violência Estrutural, in Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos/organizadores, Rogério Gesta Leal e Jorge Renato Reis – Santa Cruz do Sul: UDUNISC, 2005, tomo 5.

6. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

7. FARIA, Carlos Aurélio Pimenta. Uma Genealogia das Teorias e Modelos do Estado de Bem-Estar Social.

8. GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade, pág.69/70. São Paulo: UNESP, 1991.

9. IANNI, Octávio. A Sociedade Global, pág.89 – Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A.

10. KLIKSBERG, Bernardo. Repensando o Estado para o Desenvolvimento Social: Superando Dogmas e Convencionalismo, – São Paulo: Cortez, 1998.

11. KUNTZ, Rolf.  Os direitos sociais em xeque. Lua Nova, n.º 36, 1995.

12. LIMA FILHO, Domingos Leite. Dimensões e limites da globalização, pág.84 – Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

13. MARTÍN, Nuria Belloso. Novos Desafios da Cidadania., – Santa Cruz do Sul: UDUNISC, 2005.

14. REILLY, Charles A. Redistribuição de Direitos e Responsabilidades – Cidadania e Capital Social, in PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; GRAU, Nuria Cunill (Orgs.). O Público Não-Estatal na Reforma do Estado. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999.

15. SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Lua Nova, n.º39, 1997.

16. VIEIRA, Liszt. Cidadania e controle social,. in PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; GRAU, Nuria Cunill (Orgs.). O Público Não-Estatal na Reforma do Estado. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999.

17. WEBER, Max. Economia e Sociedade, vol.2, – Editora Universidade de Brasília: São Paulo, 1999.


[1] COSTA, Marli Marlene M. da. Políticas Públicas e Violência Estrutural, pág.1271.in Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos/organizadores, Rogério Gesta Leal e Jorge Renato Reis – Santa Cruz do Sul: UDUNISC, 2005, tomo 5.

[2] VIEIRA, Liszt. Cidadania e controle social. in PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; GRAU, Nuria Cunill (Orgs.). O Público Não-Estatal na Reforma do Estado. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999.

[3] os direitos de primeira geração compreendem os direitos civis e políticos, envolvem as liberdades clássicas e realçam o princípio da liberdade

[4] os direitos de segunda geração são os sociais econômicos e culturais que acentuam o princípio da igualdade

[5] A etimologia da palavra “cidadão” remete à “cidade” (do latim civitas, que, no mundo romano, corresponde a pólis, a Cidade-Estado dos gregos). Significa que na origem, a idéia-força da cidadania diz respeito à idéia da liberdade — real ou ilusória — de que dispunha o habitante da cidade em comparação com o servo da gleba, no limiar do sistema capitalista.  Desta forma, as expressões “direito à cidade” e seu derivativo “direito da cidadania” têm atualmente significados muito próximos.

[6] REILLY, Charles A. Redistribuição de Direitos e Responsabilidades – Cidadania e Capital Social, in PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; GRAU, Nuria Cunill (Orgs.). O Público Não-Estatal na Reforma do Estado. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999.

[7] O artigo 1º estabelece que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político.

[8] ANDERSEN, Costa Esping.  O Futuro do Welfare State na Nova Ordem Mundial pág.73

[9] BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do estado e da constituição e a transformação especial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.pág.3

[10] conforme FARIA, Carlos Aurélio Pimenta. Uma Genealogia das Teorias e Modelos do Estado de Bem-Estar Social, pág.39.

[11] a expressão foi usada pelo Prof. Ricardo Hermany, em sua tese de doutorado sobre o Poder Local, pág.296, ao alertar que as políticas públicas essenciais para o resgate das promessas da modernidade são mais eficazes se discutidas e formadas a partir de um amplo processo de engajamento dos atores sociais, numa relação dialética entre Estado e sociedade que permita a consolidação de uma cidadania governante.

[12] art.4º

[13] GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade, pág.69/70. São Paulo: UNESP, 1991

[14] LIMA FILHO, Domingos Leite. Dimensões e limites da globalização, pág.84 – Petrópolis, RJ: Vozes, 2004

[15] WEBER, Max. Economia e sociedade, vol.2, pág.163 – Editora Universidade de Brasília: São Paulo, 1999.

[16] Exemplos de políticas públicas que implementam direitos fundamentais são a Lei nº 8.080/90, que instituiu o SUS – Sistema Único de Saúde, como também a Emenda Constitucional nº 14/96, que criou o FUNDEF – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental.

[17] BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 252.

[18] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 36.

[19] ob.cit.pág.251

[20] A palavra imposição foi usada como indicativo da possibilidade de intervenção do Judiciário. Interessante, no ponto, questionamento feito pela Prof. Nuria Belloso Martín: “Assim sendo, em uma análise da cidadania social como que estamos apresentando, não podemos deixar de perguntar se deve ser a justiça ou o mercado o princípio dirigente desta cidadania social? Se optarmos pela justiça, estaremos mais próximos da opção liberal, igualitarista ou solidária – a sustentada, por exemplo, por Rawls – que opta por organizar a vida social a partir da justiça, concebida como eqüidade. Se optarmos pelo mercado, estaremos na linha do liberalismo strito, libertarismo ou neoliberalismo – representado por Nozick, que configura uma estrutura social dominada pelas leis do mercado,  baseadas em um modelo mercantilista de sociedade que encontra fundamento em um direito absoluto de propriedade na liberdade contratual.”  (in Novos Desafios da Cidadania,  pág.81/82 – Santa Cruz do Sul: UDUNISC, 2005).

[21] ob.cit.pág.89

[22] CARDUCCI, Michele. Por um Direito Constitucional Altruísta, pág.13 – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.

[23] IANNI, Octávio. A Sociedade Global, pág.89 – Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1993.

[24] SANTOS, B. de S. S. (1997) Uma concepção multicultural de direitos humanos. Lua Nova, n.º39, p. 105-124.

[25] KUNTZ, Rolf. (1995) Os direitos sociais em xeque. Lua Nova, n.º 36, p.149-157.

[26] cf. Kuntz, ob.cit. p.152.

[27] KLIKSBERG, Bernardo. Repensando o Estado para o Desenvolvimento Social: Superando Dogmas e Convencionalismo, pág.45 – São Paulo: Cortez, 1998.

[28] BOBBIO, Norberto. (1992) A era dos direitos. Rio de Janeiro : Campus.